Obras no rio São Francisco prometem levar água, mas acabam com a que já existe e causam transtornos e sofrimento por onde passam
ÚLTIMOS DIAS DE novembro, findando o período seco, e o sertão nordestino esbanja uma caatinga ainda florida, com seus tons de verde e roxo, banhada por águas que abundam em açudes e barragens à beira da estrada. Não falta água nessas terras, é o que se conclui ao percorrer a região do Semiárido Setentrional que receberá os eixos norte e leste da transposição do rio São Francisco.
Mas, se já há água, por que então uma obra faraônica, com 622 km de canais, 40 km de túneis, 35 reservatórios, 27 aquedutos, nove estações de bombeamento e duas centrais hidrelétricas, que custará aos cofres públicos R$ 20 bilhões até 2020 – e mais R$ 93,8 milhões, por ano, em manutenção?
Para a esperança
“Vai ser muito bom se a transposição vier para cá. Se Deus ajudar e eles cumprirem com a promessa, vai ter muito peixe aí dentro pra gente pegar”, é o que afirma a pescadora de traços indígenas Josefa Lourenço.
Mesmo residindo às margens da barragem de Engenheiro Ávidos, com capacidade de 255 milhões de litros d’água, localizada no município de Cajazeiras (PB), dona Josefa não tem água encanada em casa. Não tem água encanada nem energia elétrica, ainda que de sua janela seja possível ver os cabos passarem por sobre a casa. Precisa caminhar cinco vezes por dia, com um balde de 40 litros na cabeça, para trazer a água da barragem.
Sua crença é que, com as obras da transposição, o acesso à água encanada fique mais fácil, ao ser bombeada com energia, além de melhorar a produção do pescado. Expectativa compartilhada pelo pescador João Bosco: “Eu acho muito importante para nossa região, porque vai trazer benefício para os ribeirinhos. Através dessa transposição, todo mundo vai ser beneficiado”.
Diante de tantas promessas, não há como se opor. Quem seria contra água, infraestrutura e melhores condições de vida? “É uma promessa grande para nós aqui”, continua João Bosco. “Nós vivemos envolvido nisso aí. Acho que pode melhorar. Sabe como é a situação do pobre. Pobre sempre tem esperança”.
Uma esperança que, nesse caso, é alimentada por uma completa desinformação. “Por enquanto, a gente não está tendo garantia de nada”, confessa Bosco, cujo raciocínio é completado pelo vizinho, João Diniz: “Eu acho que eles não estão explicando direito. Eles poderiam dizer para as pessoas como é a verdade. Porque se eles explicassem para o povo, o povo ia ter condições de se prevenir”.
Mesmo sendo um dos locais contemplados pela transposição, a população da vila Engenheiro Ávidos não sabe se precisará sair de suas casas, quanto receberá de indenização, quando as obras começarão e quanto terão de pagar pela água que utilizarem.
De uma coisa eles sabem: será uma água cara. Uma água cara e de certa forma inútil, já que as águas da atual barragem, se bem distribuídas, já seriam suficientes para o abastecimento da população. Como informa Diniz, “eu não posso entender porque eles estão trazendo essa água. Porque água favorável nós temos para anos e anos secos. Deve beneficiar algum proprietário por lá, mas pro lado de cá não. Benefício por aqui é derrubar casa, é tirar o cara do leito do rio. E vai destruir muita casa por aqui. Se é como eles dizem, destrói muita coisa”.
Água para onde tem água
Destruição que já se iniciou no povoado de Quixabinha, em Mauriti (CE). O início das obras obrigou 83 famílias de moradores a abandonarem suas casas. O prédio onde funcionava a escola foi desativado. “Antes, aqui era bom, sossegado, mas, agora, com licença da palavra, aqui virou um inferno. Não tem mais o que a gente fazer”, desabafa a moradora Ana Marcondes.“Eles chegaram e deram 24 horas pra todo mundo desocupar as casas. 24 horas!”
Sem terem para onde ir – já que as casas prometidas na Vila Produtiva Rural ainda não foram entregues –, Ana e seus familiares se vêem obrigados a viver improvisados numa casa de taipa levantada às pressas no terreno do pai. Para piorar a situação, as obras vêm afetando seriamente a saúde familiar. “Esses caminhões – cerca de 200 carregamentos por dia – estão fazendo muito barulho e muita poeira na nossa casa. A gente não está aguentando. Meu pai tem 70 anos. Durante a noite nós dormimos, meu pai não. Ele passa a noite todinha assoando o nariz. O que é que ele vai fazer? Nesse rojão ele vai morrer”.
Há alguns quilômetros dali, no povoado Atalho, município de Brejo Santo (CE), os moradores também passam por uma situação tão dramática quanto emblemática. Mesmo abastecidos com um eficiente sistema de irrigação que garante plantio farto de feijão, milho e até capim irrigado, a população foi intimada a abandonar suas casas e terras, pois todo o vale onde se encontram será inundado pelas águas da transposição. Com indenizações muito abaixo do valor real de suas terras, os moradores se sentem enganados e com muitas dúvidas sobre seu destino. “A gente aqui fica muito magoado. O cabra sair do lugar da gente é muito ruim” afirma José Felipe, agricultor da região. “Eles falam que tem muita gente passando sede, só que aqui não é. Aqui tem água à vontade. Eu acho que quem vai ser beneficiado não vai ser gente daqui não, vai ser gente de fora. E eu creio que nós vamos servir de escravos pra eles”.
E José Felipe não está errado. Com apenas 17% de obras realizadas, já é possível Constatar o que as organizações e movimentos sociais contrários à transposição há muito alertavam: a trilha da transposição é a trilha da irrigação, cujo objetivo é fortalecer a infraestrutura hídrica para a expansão do agronegócio de exportação.
Do contrário, por que então que no próprio projeto da transposição, em seu Relatório de Impactos Ambientais, consta que 70% da águas serão destinadas à irrigação, 26% para o setor industrial e centros urbanos e apenas 4% para a população da caatinga?
E por que então as localidades com maior risco de desabastecimento estão bem longe dos canais? É o caso do sertão central do próprio Ceará e também dos estados do Piauí, Maranhão e Alagoas, conforme dados do mais recente Atlas Nordeste para Abastecimento Urbano, da ANA (Agência Nacional de Águas), a mesma que há dois anos demonstrou que, com apenas R$ 3,3 bilhões e 530 obras de pequeno e médio porte, se resolveria o deficit hídrico para 34 milhões de habitantes de nove estados do Nordeste e o Norte de Minas Gerais.
“Os ricos é que vão desfrutar”
“Eu acho que é inconveniente trazer essa água para cá, até porque nós não precisamos dessa água do rio São Francisco. A não ser que ela venha beneficiar a pobreza, mas, infelizmente, isso não está acontecendo. Vai beneficiar a indústria, e a pobreza é quem vai sofrer. Os ricos é que vão desfrutar e nós aqui Sofrendo”. Eis o que denuncia Francisco Saldanha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais TRANSPOSIÇÃO Obras no rio São Francisco prometem levar água, mas acabam com a que já existe e causam transtornos e sofrimento por onde passam de Jaguaribara (CE).
Tachim, como é conhecido na região, tem todo o direito de desconfiar da transposição. Junto com mais de duzentas famílias, ele reside às margens do Canal da Integração, que recebe águas da barragem do Castanhão – com capacidade de armazenamento de 6,7 bilhões de m3 –, e já está bem calejado quanto às falsas promessas do governo. “A gente não tem acesso de jeito nenhum à água. Aqui o pessoal tira a água escondido. O guarda vem, eles correm. Tem guarda de dia e de noite, tudo armado, e não deixa o pessoal usar a água do canal de maneira nenhuma”. Sua comunidade, desalojada pela barragem do Castanhão, ainda depende do abastecimento de carro pipa.
Não foi esta a promessa que eles ouviram oito anos atrás, quando foram reassentados. O projeto previa o incentivo à pecuária leiteira, na qual cada uma das famílias criaria dez vacas dentro de um lote de dez hectares irrigado. A irrigação nunca saiu do papel, e Tachim foi ameaçado de prisão por mais de uma vez por utilizar a água do canal. “Você acredita que da última vez vieram uns 20 carros de polícia? Eu disse: ‘Eu estou tirando essa água para dar para o meu gado, para sustentar a minha família, sabe pra quê? Para não virar marginal. Eu queria que eles fossem criados que nem homem, como eu fui criado, mas parece que não vou poder criar minha família honestamente, não’”.
ÚLTIMOS DIAS DE novembro, findando o período seco, e o sertão nordestino esbanja uma caatinga ainda florida, com seus tons de verde e roxo, banhada por águas que abundam em açudes e barragens à beira da estrada. Não falta água nessas terras, é o que se conclui ao percorrer a região do Semiárido Setentrional que receberá os eixos norte e leste da transposição do rio São Francisco.
Mas, se já há água, por que então uma obra faraônica, com 622 km de canais, 40 km de túneis, 35 reservatórios, 27 aquedutos, nove estações de bombeamento e duas centrais hidrelétricas, que custará aos cofres públicos R$ 20 bilhões até 2020 – e mais R$ 93,8 milhões, por ano, em manutenção?
Para a esperança
“Vai ser muito bom se a transposição vier para cá. Se Deus ajudar e eles cumprirem com a promessa, vai ter muito peixe aí dentro pra gente pegar”, é o que afirma a pescadora de traços indígenas Josefa Lourenço.
Mesmo residindo às margens da barragem de Engenheiro Ávidos, com capacidade de 255 milhões de litros d’água, localizada no município de Cajazeiras (PB), dona Josefa não tem água encanada em casa. Não tem água encanada nem energia elétrica, ainda que de sua janela seja possível ver os cabos passarem por sobre a casa. Precisa caminhar cinco vezes por dia, com um balde de 40 litros na cabeça, para trazer a água da barragem.
Sua crença é que, com as obras da transposição, o acesso à água encanada fique mais fácil, ao ser bombeada com energia, além de melhorar a produção do pescado. Expectativa compartilhada pelo pescador João Bosco: “Eu acho muito importante para nossa região, porque vai trazer benefício para os ribeirinhos. Através dessa transposição, todo mundo vai ser beneficiado”.
Diante de tantas promessas, não há como se opor. Quem seria contra água, infraestrutura e melhores condições de vida? “É uma promessa grande para nós aqui”, continua João Bosco. “Nós vivemos envolvido nisso aí. Acho que pode melhorar. Sabe como é a situação do pobre. Pobre sempre tem esperança”.
Uma esperança que, nesse caso, é alimentada por uma completa desinformação. “Por enquanto, a gente não está tendo garantia de nada”, confessa Bosco, cujo raciocínio é completado pelo vizinho, João Diniz: “Eu acho que eles não estão explicando direito. Eles poderiam dizer para as pessoas como é a verdade. Porque se eles explicassem para o povo, o povo ia ter condições de se prevenir”.
Mesmo sendo um dos locais contemplados pela transposição, a população da vila Engenheiro Ávidos não sabe se precisará sair de suas casas, quanto receberá de indenização, quando as obras começarão e quanto terão de pagar pela água que utilizarem.
De uma coisa eles sabem: será uma água cara. Uma água cara e de certa forma inútil, já que as águas da atual barragem, se bem distribuídas, já seriam suficientes para o abastecimento da população. Como informa Diniz, “eu não posso entender porque eles estão trazendo essa água. Porque água favorável nós temos para anos e anos secos. Deve beneficiar algum proprietário por lá, mas pro lado de cá não. Benefício por aqui é derrubar casa, é tirar o cara do leito do rio. E vai destruir muita casa por aqui. Se é como eles dizem, destrói muita coisa”.
Água para onde tem água
Destruição que já se iniciou no povoado de Quixabinha, em Mauriti (CE). O início das obras obrigou 83 famílias de moradores a abandonarem suas casas. O prédio onde funcionava a escola foi desativado. “Antes, aqui era bom, sossegado, mas, agora, com licença da palavra, aqui virou um inferno. Não tem mais o que a gente fazer”, desabafa a moradora Ana Marcondes.“Eles chegaram e deram 24 horas pra todo mundo desocupar as casas. 24 horas!”
Sem terem para onde ir – já que as casas prometidas na Vila Produtiva Rural ainda não foram entregues –, Ana e seus familiares se vêem obrigados a viver improvisados numa casa de taipa levantada às pressas no terreno do pai. Para piorar a situação, as obras vêm afetando seriamente a saúde familiar. “Esses caminhões – cerca de 200 carregamentos por dia – estão fazendo muito barulho e muita poeira na nossa casa. A gente não está aguentando. Meu pai tem 70 anos. Durante a noite nós dormimos, meu pai não. Ele passa a noite todinha assoando o nariz. O que é que ele vai fazer? Nesse rojão ele vai morrer”.
Há alguns quilômetros dali, no povoado Atalho, município de Brejo Santo (CE), os moradores também passam por uma situação tão dramática quanto emblemática. Mesmo abastecidos com um eficiente sistema de irrigação que garante plantio farto de feijão, milho e até capim irrigado, a população foi intimada a abandonar suas casas e terras, pois todo o vale onde se encontram será inundado pelas águas da transposição. Com indenizações muito abaixo do valor real de suas terras, os moradores se sentem enganados e com muitas dúvidas sobre seu destino. “A gente aqui fica muito magoado. O cabra sair do lugar da gente é muito ruim” afirma José Felipe, agricultor da região. “Eles falam que tem muita gente passando sede, só que aqui não é. Aqui tem água à vontade. Eu acho que quem vai ser beneficiado não vai ser gente daqui não, vai ser gente de fora. E eu creio que nós vamos servir de escravos pra eles”.
E José Felipe não está errado. Com apenas 17% de obras realizadas, já é possível Constatar o que as organizações e movimentos sociais contrários à transposição há muito alertavam: a trilha da transposição é a trilha da irrigação, cujo objetivo é fortalecer a infraestrutura hídrica para a expansão do agronegócio de exportação.
Do contrário, por que então que no próprio projeto da transposição, em seu Relatório de Impactos Ambientais, consta que 70% da águas serão destinadas à irrigação, 26% para o setor industrial e centros urbanos e apenas 4% para a população da caatinga?
E por que então as localidades com maior risco de desabastecimento estão bem longe dos canais? É o caso do sertão central do próprio Ceará e também dos estados do Piauí, Maranhão e Alagoas, conforme dados do mais recente Atlas Nordeste para Abastecimento Urbano, da ANA (Agência Nacional de Águas), a mesma que há dois anos demonstrou que, com apenas R$ 3,3 bilhões e 530 obras de pequeno e médio porte, se resolveria o deficit hídrico para 34 milhões de habitantes de nove estados do Nordeste e o Norte de Minas Gerais.
“Os ricos é que vão desfrutar”
“Eu acho que é inconveniente trazer essa água para cá, até porque nós não precisamos dessa água do rio São Francisco. A não ser que ela venha beneficiar a pobreza, mas, infelizmente, isso não está acontecendo. Vai beneficiar a indústria, e a pobreza é quem vai sofrer. Os ricos é que vão desfrutar e nós aqui Sofrendo”. Eis o que denuncia Francisco Saldanha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais TRANSPOSIÇÃO Obras no rio São Francisco prometem levar água, mas acabam com a que já existe e causam transtornos e sofrimento por onde passam de Jaguaribara (CE).
Tachim, como é conhecido na região, tem todo o direito de desconfiar da transposição. Junto com mais de duzentas famílias, ele reside às margens do Canal da Integração, que recebe águas da barragem do Castanhão – com capacidade de armazenamento de 6,7 bilhões de m3 –, e já está bem calejado quanto às falsas promessas do governo. “A gente não tem acesso de jeito nenhum à água. Aqui o pessoal tira a água escondido. O guarda vem, eles correm. Tem guarda de dia e de noite, tudo armado, e não deixa o pessoal usar a água do canal de maneira nenhuma”. Sua comunidade, desalojada pela barragem do Castanhão, ainda depende do abastecimento de carro pipa.
Não foi esta a promessa que eles ouviram oito anos atrás, quando foram reassentados. O projeto previa o incentivo à pecuária leiteira, na qual cada uma das famílias criaria dez vacas dentro de um lote de dez hectares irrigado. A irrigação nunca saiu do papel, e Tachim foi ameaçado de prisão por mais de uma vez por utilizar a água do canal. “Você acredita que da última vez vieram uns 20 carros de polícia? Eu disse: ‘Eu estou tirando essa água para dar para o meu gado, para sustentar a minha família, sabe pra quê? Para não virar marginal. Eu queria que eles fossem criados que nem homem, como eu fui criado, mas parece que não vou poder criar minha família honestamente, não’”.
Por Thales Gomes
Publicado no Brasil de Fato de 10 a 16 de dezembro de 2009
Publicado no Brasil de Fato de 10 a 16 de dezembro de 2009
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